Problemas de Datação
A Bibliografia, estudo dos impressos enquanto objetos materiais, tem entre seus aspectos mais pesquisados a questão da datação desses impressos. Krummel, em seu fundamental estudo sobre a datação de publicações antigas de música, estabelece três usos para os quais esse item é de primordial importância (1974:12-13):
- Editorial: a busca da autenticidade do texto
- Bibliográfico: a história dos documentos
- Catalogação
Nesta pesquisa, um dos campos que mais apresenta problemas é exatamente o da datação das publicações. É verdade que a maioria delas não apresenta grandes dificuldades. No entanto, há situações, como a primeira fase da coleção Música Sacra Mineira, publicada pela FUNARTE, com setenta e sete itens (dos quais um está fora do âmbito desta pesquisa, por se tratar de obra profana), onde não pisamos em terreno tão firme. Através de depoimentos pessoais de Aluizio Viegas, músico e pesquisador de São João del Rei e do maestro Ernani Aguiar conseguimos estabelecer o início da década de 1980 como o período dessas publicações, embora não seja possível estabelecer o ano de cada uma delas individualmente.
O maior problema, porém, está nas publicações feitas originalmente ainda no século XIX e nas primeiras décadas do século XX. O fato de muitas delas terem sido republicadas até setenta anos depois da publicação original cria uma grande dificuldade para a datação. Diga-se, de passagem, que a republicação não é comum no panorama editorial brasileiro, mas ocorre, principalmente na transição dos séculos XIX para XX, tendo a pujança do mercado editorial criado esse fenômeno.
Tomaremos como exemplo aqui as várias publicações de duas obras: um O Salutaris, do engenheiro e compositor paraibano Abdon Milanez (1858-1927), das quais temos em mãos cópias de sete exemplares, e uma Ave Maria, do compositor Antônio Ferreira do Rego, da qual temos cinco exemplares. A publicação original de ambas as obras foi feita pela Vieira Machado & Ca. Editores.
Como estabelecer a cronologia desses exemplares, diferentes entre si em vários aspectos? Observaremos que as modificações ocorrem em sua maioria nas capas das publicações, mas o texto musical, no miolo, é mantido intacto em todos os exemplares das duas obras. É ainda no miolo que algumas poucas, mas importantes modificações não textuais ocorrem, como veremos adiante.
Krummel aponta para alguns itens essenciais, diretos ou indiretos, como subsídios para a finalidade de datação de impressos, dos quais selecionamos os seguintes (Krummel, 1974: passim):
a) a numeração das placas utilizadas para a impressão – a sequência numérica das publicações, habitual nas firmas publicadoras, à guisa de catalogação, permite a chamada paracronologia (Krummel, 1974:53). Esse item pode ser encontrado tanto nas capas quanto no miolo das publicações;
b) o registro do endereço da firma publicadora na publicação – cruzando esse endereço com a cronologia das mudanças de endereço, é possível uma aproximação com a provável data da publicação. Esse item é encontrado normalmente nas capas das publicações;
c) anúncios das publicações em periódicos da época – sendo esses periódicos datados, é possível estabelecer um terminus post quem - a mais antiga data possível - para a data da publicação;
d) anúncios em outras publicações da mesma firma – é costumeira a presença de listagens de outras publicações da mesma firma, seja na primeira e quarta capas. As transformações nessas listagens podem servir como subsídio para a datação das publicações onde ocorrem;
e) catálogos das publicações da firma – a datação desses catálogos permite estabelecer um terminus post quem para a data da publicação isolada;
f) referências a eventos ou pessoas da época – dedicatórias, mudanças na moeda em que são expressos os preços das publicações, carimbos de bibliotecas etc.;
Outros itens mais sofisticados podem também ser utilizados, segundo o autor: tipo de tecnologia usada para a impressão - tipografia, gravura, litografia -, marcas d’água do papel utilizado, tipo de notação, data de copyright etc.
Para a aplicação do estudo de Krummel em fontes impressas brasileiras, encontramos o apoio do verbete “Impressão Musical no Brasil”, de Mercedes Reis Pequeno, publicado na Enciclopédia de Música Brasileira (1977). No minucioso estudo da pesquisadora, que foi fundadora e diretora da Seção de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, desfilam diante de nós as inúmeras firmas que se ocuparam da publicação de música no Brasil, a partir do século XIX. Era um mercado que sofria constantes modificações: firmas surgiam e se desfaziam; firmas se uniam e separavam; firmas eram herdadas ou compradas por outras; mudavam de endereço.
No estudo de Pequeno nos interessam alguns itens, tais como:
a) correlação entre numeração de chapas e os anos de publicação, item detalhado no que diz respeito à firma Bevilacqua, com seus desdobramentos, e da Arthur Napoleão, que também inclui a correlação com os vários endereços da firma, com seus desdobramentos;
b) correlação entre os diferentes nomes das firmas e o período de atuação;
c) correlação entre os endereços das firmas e o período de atuação.
É inevitável que o estudo de Pequeno tenha suas imprecisões, mas serve como uma guia importante para o problema da datação das fontes impressas brasileiras. É de se lamentar apenas nesse estudo a falta de referências bibliográficas que facilitariam o caminho para novas pesquisas.
A Casa Vieira Machado & Ca. Editores, firma carioca responsável pela publicação original do O Salutaris e da Ave Maria tinha o hábito, nem sempre sistemático, de colocar a data da publicação junto com a numeração da chapa.
No quadro abaixo, vemos um esboço de correspondência entre a numeração das chapas e o ano de publicação, conforme pesquisa realizada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ:
Tabela 1 – Correspondência entre números de chapas e anos de publicação da firma Vieira Machado
Numeração da chapa | Ano de publicação |
---|---|
981 | 1901 |
1016 | 1902 |
1021 | 1902 |
1047 | 1902 |
534 | 1907? |
728 | 1907? |
840 | 1907? |
1083 | 1908? |
1233 | 1904 |
1237 | 1904 |
1307 | 1905 |
1423 | 1910 |
1428 | 1910 |
1486 | 1912 |
1498 | 1912 |
1543 | 1913 |
Observe-se a incoerência na correspondência entre a numeração das chapas nos anos de 1907 e 1908. Parece uma numeração paralela. As várias circunstâncias que levam a inconsistências das firmas impressoras com relação à numeração das chapas são exemplificas em detalhe por Krummel (1974:53-64).
O Salutaris de Abdon Milanez
É possível estabelecer a data da publicação original do O Salutaris de Milanez, claramente presente na maioria dos exemplares disponíveis: Outubro de 1901 (10 1901). O número da chapa é V.M & C.981.
O exemplar aparentemente mais antigo (CMSRB-122/006) de que dispomos da publicação dessa obra traz como endereço da firma a Rua dos Ourives, 51 (atual Rodrigo Silva, no centro do Rio de Janeiro), situando-o, pois, entre 1901, data da publicação original e 1908, ano limite em que a Vieira Machado esteve nesse endereço (Pequeno, 1977:358). Alguns itens complementares poderiam ajudar a precisar a data: o nome manuscrito da proprietária do exemplar, Adelaide Fragoso, e um carimbo da catalogação na Biblioteca da Escola Nacional de Música. A referência à Escola Nacional de Música não se apresenta como de grande valia, pelo fato dessa instituição de ensino ter adotado esse nome a partir de 1937, ou seja, em data muito posterior ao período que nos interessa.
Seguindo a provável cronologia, encontramos uma republicação dessa obra no período entre 1911 e 1925 (CMSRB-122/004), época em que essa firma esteve na Rua do Ouvidor, 179 (Pequeno, 1977:358), endereço constante na primeira capa. Observe-se que a data da publicação original não está presente, mas o número da chapa permanece no miolo, como é de costume. Como itens complementares, encontramos dois carimbos mencionando a biblioteca da Escola Nacional de Música, o que não é de maior interesse, pelas razões já mencionadas acima, e um carimbo informando a doação de José Albuquerque Lima. Um pouco mais promissor é o anúncio na primeira capa, “Músicas para Canto”, com uma listagem de outras publicações da mesma firma, com os respectivos preços. Uma eventual datação da composição de uma dessas obras poderia ajudar na datação da republicação aqui tratada, por exemplo.
Em seguida, temos uma republicação, provavelmente nos anos de 1925 ou 1926 (CMSRB-122/026). Aqui, o dado fundamental á presença do nome do pianista mineiro Guilherme Fontainha (1887-1970) associado com a publicação (Pequeno, 1977:358). Também aqui a data da publicação original não consta, mas o número da chapa permanece no miolo. Mencione-se ainda a presença de um número de telefone, Norte 5937. Uma consulta a catálogos telefônicos do início do século XX poderia ajudar a estabelecer a época exata em que essa firma passou a ter esse número de telefone, sendo mais um item auxiliar para a datação da republicação. Outro anúncio “Músicas para Canto” está presente na primeira capa, mas sem os preços e com poucas obras em comum. Mencione-se, ainda, o carimbo da firma paulista Casa Sotero – Campassi & Camin, situada na Rua Direita, no. 37, endereço que passou a ter a partir de 1921 (Pequeno, 1977:360).
Em outro exemplar (CMSRB-122/008), da mesma época que o anterior, reencontramos a data da publicação original no miolo. As novidades aqui são um carimbo da Casa Mozart, fundada no Rio de Janeiro em 1905 e ativa até a década de 1940 (Pequeno, 1977:358), e uma nova listagem-anúncio, na quarta capa, intitulada “Canções Brasileiras”.
O quinto exemplar (CMSRB-122/005) apresenta a obra republicada sob a égide de Edição E.A.M (Ernesto Augusto de Matos), tendo como depositários a Rádio Continental Ltd., uma firma para venda de aparelhos radiofônicos e similares. O período dessa publicação situa-se entre 1934, ano em que Ernesto Augusto de Matos assumiu o controle da firma (Pequeno, 1977:358), e 1942, pela moeda utilizada, ainda o mil-réis, que foi mudada para cruzeiros em outubro desse ano. O número da chapa foi modificado para E.A.-3-M, no miolo, segundo uma lógica que ainda não foi possível identificar. Outros dados são: o mesmo carimbo da Casa Mozart, o nome manuscrito da proprietária, Olga Nobre, e uma nova listagem-anúncio intitulada “Trechos Originaes Modernos / ara (sic) piano”, com os preços. Observe-se a simplicidade da primeira capa, sem ilustração.
O sexto exemplar (CMSRB-122/014) apresenta uma nova numeração de catálogo (chapa), E.A.M 20021, presente tanto na primeira capa como no miolo. Um dado novo surge com a associação do nome da Irmãos Vitale Editores, firma fundada em São Paulo em 1923 e com atuação nessa cidade e Rio de Janeiro. O preço, ainda em expresso em mil-réis, nos indica período anterior a 1942, pela razão já exposta acima. Na quarta capa encontramos a listagem-anúncio intitulada “Canções Brasileiras”, com novo lay-out e novas obras. Note-se a majoração dos preços das obras em comum com o exemplar anterior. Destaque-se, ainda, o número 0019, presente na quarta capa, indicando, provavelmente, o número do exemplar dentro da tiragem. Encontramos, ainda, os endereços da Irmãos Vitale em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O sétimo e último exemplar de que dispomos (CMSRB-122/022) mantém algumas características em comum com o anterior: mesma ilustração da primeira capa e a mesma associação com a Irmãos Vitale – Editores, em São Paulo e Rio de Janeiro. No entanto, há algumas modificações importantes. O número de catálogo (chapa) muda mais uma vez, agora para E.A.M. 21, tanto na primeira capa quanto no miolo; o preço impresso está expresso em cruzeiros (Cr$ 3,00), indicando período posterior a outubro de 1942. O preço, aliás, está rasurado, majorado para Cr$ 5,00, mediante carimbo. A quarta capa apresenta a mesma listagem “Canções Brasileiras”, mas desaparece o endereço da Irmão Vitale no Rio de Janeiro, permanecendo o mesmo endereço de São Paulo. Curiosamente, o preço dessas publicações anunciadas ainda permanece em mil-réis, o que nos leva a supor que essa republicação deva ter acontecido logo no período da mudança das moedas, ou seja, talvez em 1943. O número do exemplar dessa tiragem é 255. Mencione-se, ainda, o carimbo da Casa Arthur Napoleão – Sampaio Araújo & Cia Ltda, com endereço na Av. Rio Branco 122, no Rio de Janeiro. Essa firma estabeleceu-se nesse endereço a partir de 1913 (Pequeno, 1977:357), informação que não nos ajuda muito na datação de uma publicação ocorrida certamente após 1942, como vimos acima.
Ave Maria de Antônio Ferreira do Rego
Continuando este exercício de datação, abordaremos cinco exemplares da Ave Maria, de Antônio Ferreira do Rego. A baixa numeração da chapa, V.M e C. 106, indica que a publicação original deve ter ocorrido provavelmente em 1893. Podemos tomar como referência a data da publicação original de Viva la Gracia, valsa de Chiquinha Gonzaga para piano, publicada em 1894, com numeração de chapa V.M e C.194. A firma Fontes & Cia Novo Empório Musical foi fundada em 1891, sendo seguida pela Vieira Machado & Ca. Editores a partir de 1893 (Pequeno, 1977:358). Os dois primeiros exemplares de que dispomos, e que julgamos serem os mais antigos, são idênticos no que diz respeito à composição artística da primeira capa. O endereço presente em ambas as primeiras capas, Rua dos Ourives, 51, demonstra que foram publicados entre 1893 e 1908, período em que a firma publicadora ali se situava e teve esse nome, como já vimos acima. No entanto, há algumas diferenças pequenas, mas importantes. Aquele que estamos considerando como o exemplar mais antigo (CMSRB-018/024) contém a numeração da chapa, vista acima, no miolo, e os dizeres “Officina Litho-Zincographica de Vieira Machado & C.”, na primeira capa, não presentes no segundo exemplar. O dado mais importante, porém, é o fato de o segundo exemplar (CMSRB-018/033) conter um número de telefone, “Telephone–1051”, na primeira capa, não presente no primeiro. Supomos, naturalmente, que, naqueles tempos, a presença de um número de telefone deva significar algo novo, posterior. Este segundo exemplar porta ainda uma data manuscrita, “13-4º. 1908”, o que corrobora o terminus ante quem - a data mais recente possível – estabelecido acima para esta publicação. Seja mencionada, ainda, no canto superior esquerdo, uma dedicatória de oferecimento, ilegível.
O terceiro exemplar (CMSRB-018/049) localiza a firma na Rua do Ouvidor, 179, o que nos faz situá-lo entre 1911 e 1925, período em que a Vieira Machado esteve nesse endereço. O número da chapa permanece no miolo e encontramos na primeira capa a listagem de outras obras da firma, “Músicas para Canto”, já mencionada. Este exemplar partilha, pois, das mesmas características do segundo exemplar do O Salutaris, estudado acima.
O quarto exemplar (CMSRB-018/023), bem posterior, tem todas as características do quinto exemplar do O Salutaris analisado acima: primeira capa simples, associação com Ernesto Augusto de Matos (Edição EAM) e a Rádio Continental Ltd e preço ainda em mil-réis, o que o situa no período entre 1934 e 1942. Sejam mencionados, ainda, uma inscrição manuscrita ilegível, no canto superior esquerdo, provável nome da proprietária do exemplar, e um carimbo da Casa Arthur Napoleão.
Finalmente, o quinto exemplar (CMSRB-018/050), tem todas as características do sétimo exemplar do O Salutaris analisado acima: mesma ilustração de primeira capa, Edição EAM associada com Irmãos Vitale, preço já em cruzeiros. Um dado novo, entretanto, é a informação impressa na página 2, “Aprovado pelo D.I.P 2 / EM / 1264”. Este dado é decisivo para a aproximação de uma datação, já que a sigla D.I.P se refere ao Departamento de Imprensa e Propaganda, criado por Getúlio Vargas em 1939 e extinto em 1945. Unindo-se essa informação com o preço expresso em cruzeiros, podemos datar a publicação como tendo ocorrido entre 1942 e 1945.
Conclusão
A catalogação de fontes impressas demanda o estabelecimento das datas de suas publicações. Este item é muitas vezes problemático, pelo fato de boa parte das firmas publicadoras em atividade no final do século XIX e início do século XX não registrar de forma clara esse dado tão precioso. Os estudos de Krummel e Pequeno são de grande valia para a datação de fontes impressas, trazendo subsídios para tal. Esta pesquisa não pretende ser conclusiva. O objetivo aqui foi apenas utilizar esses sete exemplares do O Salutaris, de Abdon Milanez, e os cinco exemplares da Ave Maria, de Antônio Ferreira do Rego, como exercício de datação, chamando a atenção para as informações contidas nessas publicações – muitas ainda não investigadas – e que podem levar a um resultado cada vez mais preciso.
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